Reportagem REVISTA VEJA (www.veja.com)

Déficit de atenção ainda é problema subestimado

Por Natalia Cuminale

As vendas de metilfenidato - medicamento indicado para o tratamento de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) – saltaram quase 80% entre 2004 e 2008, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O aumento provocou suspeitas de uso indiscriminado da droga: levantou-se até a hipótese de que crianças receberiam erroneamente o diagnóstico positivo por conta do comportamento agitado. Além disso, adolescentes estariam obtendo o remédio tarja-preta clandestinamente para turbinar suas funções cognitivas.


Consultados acerca da eventual prescrição infantil imprópria, especialistas ouvidos por VEJA.com apostaram justamente na tese contrária. "Configura-se mais um caso de subdiagnóstico do que de prescrição exagerada", afirma Luís Rohde, psiquiatra da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). "Esse fenômeno de vendas mal corresponde à necessidade real do país", complementa Paulo Mattos, psiquiatra da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro sobre o tema No Mundo da Lua. A partir de dados da Anvisa e do IBGE, o médico diz que menos de 30.000 pessoas com TDAH são tratadas por ano no país - número baixo, frente aos 3 milhões de brasileiros potencialmente portadores.
Por essa razão, os especialistas preferem creditar a disparada no consumo à disseminação do conhecimento sobre o distúrbio neuropsiquiátrico - que atinge entre 3% e 6% das crianças em idade escolar. "Quanto maior a gama de informações, capacitação e esclarecimento acerca de um transtorno, mais pessoas procuram um diagnóstico. Isso faz com que aumente a incidência do uso da medicação", afirma Iane Kestelman, psicóloga e presidente da Associação Brasileira de Déficit de Atenção.

Diagnóstico difícil - A opinião dos médicos, contudo, não encerra a questão. "De fato, existem diagnósticos errados e o uso desnecessário da medicação - o que ocorre em todas as áreas medicina. Mas o tratamento correto não pode pagar a conta dos maus profissionais", afirma Kestelman.

Na raiz do problema está a dificuldade no diagnóstico de TDAH. Ao contrário de outros males, não há um exame laboratorial que possa complementar ou confirmar a análise realizada em consultório. Para descobrir se uma criança possui o transtorno, é preciso observar se os sintomas ocorrem há pelo menos seis meses em ambientes diferentes, como escola e família. Além disso, o médico especialista deve, por meio de entrevista, analisar se o perfil do paciente se encaixa em uma lista de 18 sintomas. Isso pode dar margem a que um médico menos experiente realize um diagnóstico exagerado.

"Os sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade têm que se manifestar em todos os contextos em que a criança vive e precisam provocar um prejuízo na vida dela, seja no relacionamento familiar, social ou no desempenho acadêmico", explica Marcos Arruda, neurologista pediátrico do Instituto Glia e membro da Associação de Neurologia e Psiquiatria Infantil.

Erro e acerto - Por conta de um diagnóstico errado, o designer Gabriel (que prefere não revelar seu nome verdadeiro) viveu severas turbulências durante boa parte da vida. "Minha infância e adolescência foram um inferno. Mais tarde, cheguei a largar a faculdade três vezes devido ao problema", conta. Sofrendo, ele procurou um médico, que apresentou o diagnóstico de transtorno bipolar e impôs ao jovem, hoje com 27 anos, três anos de tratamento intensivo com remédios para combater aquele mal.

Há dois anos, porém, veio um novo veredito: TDAH. Veio também uma nova vida. "Agora, faço em 15 minutos uma tarefa que, por conta de distração, levaria uma hora", diz Gabriel.

Surpresa maior acerca da sua situação médica estaria por vir. Depois do novo diagnóstico, a mãe de Gabriel revelou que ele recebera o mesmo parecer médico na infância. O tratamento, contudo, foi suspenso devido a pressões na escola. "Naquela época, a diretora repreendeu minha mãe porque não achava correto dar um remédio tarja-preta para uma criança", diz Gabriel. "Ela só me contou a história depois do novo diagnóstico: até então, ela tinha vergonha de revelar isso."

Como funciona a droga - A Ritalina, nome comercial do metilfenidato, ajuda pessoas com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade a se concentrar com mais facilidade. "Um paciente com TDAH tem seu processo de atenção desregulado na liberação de dopamina (neurotransmissor)", diz Geraldo Possendoro, psiquiatra comportamental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "A medicação estabelece o funcionamento adequado."


Droga para déficit de atenção é usada para 'turbinar' mente

Enquanto algumas pessoas utilizam o metilfenidato para conseguir a concentração necessária para atividades cotidianas, outros usam o medicamento com o objetivo de elevar suas funções cognitivas ? mesmo sem necessidade clínica comprovada. A meta é conseguir se focar e melhorar o desempenho em provas da escola, da faculdade ou até para passar em um concurso público.

Esse foi o caso da estudante Sheyla Goulart Citrangulo, de 19 anos, aluna do curso de biomedicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Ela usou o remédio quando tinha 15 anos. "Eu precisava aumentar minhas notas em física e decidi que tomaria um comprimido a cada dia que tivesse aula da disciplina", relembra. "No primeiro dia, fiquei até assustada, porque borbulhavam ideias na minha cabeça. Na aula, ao contrário dos outros dias, eu não desviava a atenção em nenhum minuto." Resultado: as notas melhoraram, sem efeitos colaterais aparentes.

A estudante fez ainda outra investida com o metilfenidato. Dessa vez, porém, o resultado foi considerado "desastroso". "Eu tive uma crise de nervos, chorava o tempo todo e não lembrava nada das matérias que antes eu dominava. Então, cessei o uso", diz.

Os efeitos colaterais mais comuns para quem utiliza o metilfenidato são dores de cabeça, diminuição do apetite, irritabilidade e alteração do sono. "Isso pode ocorrer em 15% ou 20% dos pacientes que recebem a prescrição médica", explica Luís Rohde, psiquiatra da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS).

Em casos em que a receita médica é obtida de forma clandestima, os riscos aumentam. "Como não existe avaliação médica prévia, há risco de agravamento de problemas pré-existentes neuropsiquiátricos ? como transtorno do pânico, transtorno bipolar, epilepsia - e também clínicos - hipertensão arterial, arritmias cardíacas", diz Paulo Mattos, psiquiatra da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro No Mundo da Lua.

Em 2008, a revista científica Nature realizou uma pesquisa informal sobre o assunto junto a 1.400 leitores. Resultado: 20% deles assumiram já haviam ingerido metilfenidato e modafinil com o objetivo de melhorar a concentração e a memória. "O metilfenidato realmente melhora o desempenho cognitivo. É um fato que vem sendo discutido pelos cientistas e já deixou de ser puramente médico, tornando-se uma questão ética", afirma Marcos Arruda, neurologista pediátrico do Instituto Glia e membro da Associação de Neurologia e Psiquiatria Infantil.

O recente salto no consumo da droga no país - quase 80% entre 2004 e 2008 - teria aí mais uma razão. "Um aumento de vendas do metilfenidato pode estar relacionado ao uso não-médico do medicamento - especialmente num país onde dezenas de milhares de pessoas vivem estudando para concursos públicos", comenta Mattos.


Déficit de atenção: professor pode ajudar

Normalmente, é no ambiente escolar que os problemas de atenção e hiperatividade começam a aparecer. Além de agitada, a criança não consegue tirar notas boas ou pode ter problemas para se relacionar com os amigos. Por isso, os médicos ressaltam a importância do professor nesse processo: ele pode levantar a hipótese da existência de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). "Muitas vezes, eles percebem os sinais antes mesmo dos pais. É importante ouvi-los", afirma Paulo Mattos, psiquiatra da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro No Mundo da Lua, sobre TDAH.

Nas escolas, o comportamento das crianças é observado de perto por pedagogos. Quando uma criança começa apresentar um comportamento prejudicial, os pais devem ser imediatamente convidados para uma conversa.

"Não temos capacidade de diagnosticar. O que podemos fazer é conversamos com a família e sugerir uma avaliação médica", explica Kristine Kross Maita, diretora da Unidade do Morumbi do Colégio Visconde de Porto Seguro, em São Paulo. "Na escola, temos muitas crianças que tomam Ritalina (medicamento que controla o TDAH) e já tivemos resultados excelentes."

O tratamento para uma criança com TDAH pode mudar completamente sua evolução, principalmente na fase escolar. No entanto, é preciso cautela. "Nem todos os que são agitados têm TDAH", alerta Silvania Leporace, coordenadora do serviço de orientação educacional do Colégio Dante Alighieri, em São Paulo. "As crianças fazem muitas coisas ao mesmo tempo, mas nem todas são hiperativas. Algumas só precisam de regras e limites", completa.

Paulo Mattos resume qual deve ser o objetivo de um eventual tratamento para uma criança, caso o TDAH seja comprovado. "A ideia principal não é tratar essa criança porque ela é agitada demais e atrapalha as outras. Deve-se tratá-la porque o problema atrapalha o próprio desenvolvimento dela."


Fonte: Revista Veja